Ana Julia Soares Cardoso[1] - anajulia.julia@hotmail.comA ARQUIVISTICA, A HISTÓRIA E SUAS DIFERENCIAÇÕES CONCEITUAIS: estudo de caso sobre a documentação produzida nas religiões de matriz afro-indígena na Paraíba
Francinete F. de Sousa [2] - neteducadora@gmail.com[2]
RESUMO: A gestão documental no terceiro setor vem contribuir para área da Arquivologia, no sentido de possibilitar ao arquivista outro modo de atuar em campos que o colocam como um protagonista no tratamento da informação. O presente artigo, assim, busca fazer uma análise preliminar das documentações do setor de religiões de origem afro-indígena, especificamente, o rito da jurema sagrada na Paraíba, levantando questões como preservação do patrimônio material e imaterial do nosso povo. Para tanto, é necessário que se faça uma distinção objetiva do trabalho e desempenho do arquivista em relação a outras ciências afins, em especial à História, uma vez que se trata de um mesmo objeto de estudo com um olhar diferenciado, ou seja, à Arquivologia cabe a gestão documental com o papel de dinamizar não só as atividades de produção, tramitação, classificação, avaliação e arquivamento dos documentos, mas de possibilitar um planejamento estratégico das ações, viabilizando a acessibilidade das informações produzidas, bem como a preservação dos bens culturais.
Palavras - chave: GESTÃO DE DOCUMENTOS, TERCEIRO SETOR, DOCUMENTAÇÃO DE RELIGIÕES DE ORIGEM AFRO-INDÍGENA, ARQUIVÍSTICA
[1] Pedagoga - Educanda do curso de Arquivologia – Universidade Estadual da Paraíba – UEPB – Brasil.
[2] Profª Dra. do curso de Arquivologia – Universidade Estadual da Paraíba – UEPB – Brasil - Orientadora do trabalho.
INTRODUÇÃO
A arquivística é uma ciência que abrange uma série de fases temporais na área documental. Os autores da área dividem a existência dos documentos em três idades quais sejam: corrente, intermediária e permanente ou histórica. Nos deteremos à chamada terceira idade documental que seria a permanente ou histórica, pois há de se reconhecer que, em todos os lugares do mundo em que se organizou minimamente o arquivo, tinha-se, pelo menos teoricamente, uma idéia de organização para otimização de trabalhos e funções e a garantia da utilização das futuras gerações da história construída no agora, imediato.
Por isso, em se tratando da arquivística formal, pensando-se na mera relação do suporte de papel, do arquivista e do usuário, ainda que problemática em função da intervenção dos métodos de biblioteconomia e da falta de uma nomenclatura própria para área específica de arquivos é um questionamento infinitamente menor quando se propõe o levantamento de uma documentação num setor vivido à margem da sociedade com uma cultura que sobreviveu aos massacres psicológicos de outras religiões e à própria intolerância religiosa.
Além disso, existem alguns paradigmas a ser rompidos no que tange à função da arquivística na busca e sistematização de documentos especialmente no setor de religiões de matriz afro-indígena, portanto, necessita-se de algumas definições sobre: Qual o papel do arquivista e do historiador na relação direta com os arquivos históricos? Como pensar a gestão de documentos a partir da luta pela restauração de um patrimônio material e imaterial de setores chamados excluídos ou mesmo outsiders, considerando sua diversidade? Existe uma relação ideológica no trato com os arquivos, o que justificaria a importância dada a preservação de arquivos de um setor em detrimento de outro, em especial dos que vivem à margem da sociedade?
Portanto, a pretensão deste artigo é a de (re) pensar uma arquivística voltada para a pesquisa em todas as áreas do conhecimento que dele necessitam, estudando o papel do arquivista e do historiador no levantamento de fontes documentais. Em um segundo momento, o texto dirigir-se-á à problemática do Acais – sítio localizado na entrada do município de Alhandra/Paraíba, considerado o berço da Jurema Sagrada do nordeste – sobre a importância dos documentos necessários para garantir o tombamento daquelas terras e a construção do museu da Jurema Sagrada e, por último, o questionamento da neutralidade do arquivo e do arquivista na sociedade contemporânea.
A arquivística, pensada inicialmente para organizar documentos na pós-revolução francesa sob a égide de manter viva a história de luta daquela nação passou por desdobramentos que refletiam sobre quais documentos deveriam ser preservados, pois imaginava-se, e isso é uma tendência natural em finais de conflitos, em destruir toda memória dos “opressores” para que nunca mais se tivesse lembranças de períodos sofridos. Neste momento, usou-se o bom senso, em que pese apenas o argumento de que a preservação destas lembranças, livrariam as gerações futuras de retornarem ao status anterior, no sentido de haver um retrocesso do processo de democratização da sociedade.
E aqui começa a nossa análise. O termo revolução segundo o dicionário de filosofia DE JAPIASSU E MARCONDES (2006) significa
No contexto político uma reviravolta, uma alteração radical e profunda de uma sociedade em sua estrutura política, econômica, social, etc..., geralmente por meios violentos e de forma súbita entre a ordem anterior e um novo projeto-políco-social. (p. 241)
Portanto, revolução não tem uma identidade fixa que se possa imaginar o estado de bem estar social. Pelo menos, não na opinião de todos. O maior exemplo disto são as revoluções militares ocorridas nas décadas de 60 e 70 nos países da América Latina. Se transferirmos essa discussão para o trabalho do arquivista em momentos de crise social, haverá necessariamente uma prioridade na organização dos documentos. A exemplo do que ocorreu na França no período citado, havia uma intencionalidade na guarda dos documentos. Eles serviriam para um determinado grupo que defendia determinadas idéias e, por estar no poder, iria defender mecanismos de manutenção de suas idéias no poder. O trabalho do arquivista, neste caso, acaba por se submeter à ordem vigente.
Hoje, com o advento do avanço das novas tecnologias de informação e comunicação – NTICs, onde informação não é mais poder, e sim, conhecimento e potencialização dele, o arquivista passa a ter uma nova demanda social com seu perfil profissional crescentemente importante para a gestão documental sem vínculos ideológicos ou submetidos ao julgo de ordens superiores, ainda que haja correntes dentro desta disciplina que o coloquem em posturas submissas ao regime em que se localiza.
A função do arquivista moderno é colocar à disposição da sociedade aquilo que foi escondido dela durante toda a sua existência. Neste sentido, o arquivista retoma para si a função que até então se imaginava mais aproximada do historiador. Com uma responsabilidade ainda maior, pois se ao historiador era dado como natural a coleta de dados e provas documentais para comprovar seus argumentos, em que pese que fosse um equívoco inconsciente e até certo ponto, inevitável, ao arquivista contemporâneo é dado o papel inter e multidisciplinar de ser colocado à serviço de outras ciências afins. Em outras palavras, cabe ao arquivista criar uma gestão documental que volte os arquivos para profissionais de todas as áreas, bem como repensar uma relação que o aproxime dos usuários de qualquer identidade, resgatando assim, a memória oficial e não oficial, dos incluídos e dos excluídos, dos estabelecidos e dos outsiders da humanidade.
ACAIS, PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL DOS NORDESTINOS
O Acais é um sítio localizado na entrada do município de Alhandra, Estado da Paraíba, onde residiam nas décadas de 20 e 30, antigos juremeiros que recebiam em suas terras pessoas de todas as partes do Brasil para auferirem graças como benzimentos, trabalhos espirituais e coisas afins. Há de se salientar que, o culto à Jurema Sagrada tem raízes profundas no Estado da Paraíba e se caracteriza como culto religioso com influência do catolicismo europeu, dos cultos aos orixás e da pajelância indígena, composto de 7 cidades espirituais representadas por árvores de jurema preta ou branca, cujas partes dela, localiza-se na região litoral paraibana.
O fato é que, após a morte de Maria e Zezinho do Acais[1], e de alguns outros antigos juremeiros, o sítio foi passando de geração em geração, até que foi vendido. Por ser uma religião de muita inserção na Paraíba e no Brasil inteiro, pois foi difundida para outras regiões, as terras do Acais são sagradas para os atuais juremeiros, em especial da Paraíba e de Pernambuco, que estão travando uma luta pelo tombamento daquelas terras em parceria com as Universidades de Pernambuco (UFPE), Paraíba (UEPB e UFPB) e Rio Grande do Norte (UFRN).
Mas essa luta não é nova. Desde a década de 70, a partir de Pai Adão de Pernambuco vem-se travando uma batalha para sensibilização social no sentido de que se preservem aquelas terras aos juremeiros e à própria sociedade como um bem material. Pretende-se a construção do museu dos juremeiros e a organização documental em suporte de papel que, encontra-se sem nenhum tratamento adequado. Trata-se enfim de revisitar uma cultura baseada em registros orais próprios de religiões praticadas em terreiros, dado que significa a preservação da memória de um setor social marginalizado por não constar nos anais das religiões ditas “oficiais” pelo sistema vigente.
Para se ter uma idéia da problemática do Acais, a área incluída, nesta empreitada, compreende o mausoléu do Mestre Zezinho do Acais, morto na beira da estrada, próximo onde se encontra o monumento construído, as terras onde se encontrava a casa de Maria do Acais e o pequeno centro onde ela fazia suas atividades religiosas e a Capela de Nossa Senhora do Acais, localizada na frente das terras onde se pretende erguer o museu dos juremeiros ou a partir do alicerce da antiga casa, ou na ausência deste, a reconstrução à luz de registros fotográficos da época em que existia.
Por trás da capela, existe o túmulo de um dos descendentes de Maria do Acais, o chamado Mestre Flósculo onde há uma escultura feita de cimento em forma de um tronco cortado de uma árvore de jurema. A escultura possui um valor afetivo e cultural para sobretudo os adeptos da Jurema, no entanto, não é difícil inferir que, na hipótese de tombamento, seria infinitamente mais fácil que a capela e não o túmulo com a escultura sejam preservados, pois, a capela tem uma ligação íntima com a religião oficial, enquanto o túmulo, do ponto de vista da religiosidade, tem significado apenas para os juremeiros.
Há uma necessidade, urgente, de levantamento desta memória do ponto de vista documental. As federações intervieram em momentos diferentes neste processo, porém o que se tem de concreto, hoje, é que a dificuldade desta luta em reconstruir a memória desta religião fica mais distante. O professor Luíz Assunção[2], ao ser abordado sobre a reconstrução do Acais, culpabilizou a Universidade Federal da Paraíba e as federações da época pelo estado em que se encontram, hoje, aquelas terras, chamando-os de omissos e responsáveis pelo descaso com a memória de um povo. Isto de fato faz sentido, vez que, do ponto de vista técnico cientifico, neste caso, do olhar embora inicial do arquivista, graves omissões e erros foram cometidos. Não há um mínimo de organização dos documentos nem projetos de revitalização dessa memória.
Verificamos, já como atividade de levantamento da documentação, que no prédio da sede da federação que fora concedido pelo prefeito Osvaldo Trigueiro em 1982, para o culto da jurema, funciona uma oficina mecânica, um lava-jato e um escritório imobiliário: tudo que não gera renda nenhuma para a federação e muito menos algum benefício para o chamado povo de terreiro. Além disso, em 1997, no relato da pesquisa que resultou de um vídeo pela professora Elisa Maria Cabral identificou-se o rumo distorcido e pouco responsável tomado pelos atuais dirigentes do Acais, no concernente a preservação do patrimônio de Alhandra como berço da Jurema Sagrada. Na monografia do curso de Bacharelado em Ciências Sociais da UFPB[3] feita pelo estudante Stênio José Paulino Soares há outro relatos negativos sobre esta questão.
Mesmo com toda as contradições e desgastes sofridos pelo culto ao longo dos tempos, até pela forçada religiosidade do brasileiro, não se pode dizer que o culto acabou ou está correndo nesta vertente vez que, há, hoje, um despertar de movimentos intelectuais e do próprio culto em direção a sua revitalização. Nesse sentido, houve, no dia .... uma grande manifestação no Acais de juremeiros e juremeiras de Pernambuco e Paraíba para inauguração e aposição da placa no memorial de Zezinho do Acais, tornando-se um dia de orações e pedidos. Foram produzidos alguns vídeos, mas não podemos dizer que houve alguma repercussão maior, no entanto inicia-se um processo que iremos acompanhar amiúde.
As experiências mostram que não basta uma mobilização, esta tem que ser acompanhada de uma batalha judicial e legalista, ou seja, neste contexto, órgãos como o IPHAEP e o IPHAN tem uma importância fundamental no processo de tombamento daquelas terras. Neste sentido, a Universidade passa a ser uma parceira indispensável para reorientar o processo; outra precaução a ser tomada é a de que não se pode olhar para um patrimônio histórico desta grandeza com olhos meramente financeiros. Ao contrário, deve-se garantir a lisura, transparência e legitimidade do movimento e de seus frutos para que esteja ao alcance de usuários de todas as camadas sociais. Até porque os principais interessados, o povo de terreiro, vêm de uma camada muito humilde da sociedade que procede de um processo de rebaixamento de sua auto estima durante séculos e este patrimônio tem que estar ao seu alcance.
A terceira e última precaução é a de que se garanta a integridade dos monumentos a serem reerguidos e restaurados pois, não se pretende alçar toda uma luta para depois abandoná-la. É necessário traçar políticas de resgate da cultura construída, estabelecida e inserida nos costumes do povo brasileiro para que as novas gerações tenham conhecimento da própria história do seu povo e queira preservá-la.
Todo este processo gera documentos ricos em informação os quais serão objeto de análises do ponto de vista arquivista pois, apesar de ser uma religião de costumes orais (e o arquivista também deve ter seu olhar voltado para a oralidade), no trato, por exemplo, com as federações, é costumeiro colocar diplomas e licenças num quadro e expô-los nos templos e terreiros. Os diplomas possuem as funções de comprovar que o dono da casa ou os filhos têm as “obrigações” necessárias para ocuparem aquele espaço e, também de demonstrar para os que frequentam aquele espaço que os participantes do terreiro são legitimado por um órgão externo.
Há juremeiros antigos que guardam em suas casas e que muitas vezes não dão a importância devida, em todas as condições imagináveis, verdadeiros tesouros documentais guardados apenas sob a visão sentimental. É possível imaginar quanto da nossa história já se perdeu com a eliminação dos chamados “imprestáveis” pelos “donos” desses documentos.
Outra dificuldade, e neste caso, não é mera ingenuidade, pois se trata de pessoas que tem (têm) formação acadêmica, são historiadores e que profissionais afins que detém documentos históricos e que, talvez por uma disputa de espaço de pesquisa, tornam os “guardiões” deles, tirando o direito e a acessibilidade de pesquisadores de outras áreas.
Temos assim, deslindado um debate sobre a função do arquivista moderno. O terceiro setor, as associações, como sindicatos, cultos religiosos, devem ser merecedoras de nossa atuação? Este não seria um nicho de empregabilidade do arquivista que ao mesmo tempo em que cumpre sua função social descobre que não está apenas no Estado, ou seja, no primeiro setor a necessidade de organização documental e da memória institucional?
Ao nosso ver, torna imprescindível à gestão desses documentos para que se voltem aos usuários de todas as camadas da população e, no meio acadêmico, aos antropólogos, aos cientistas sociais todos que estejam preocupados em mostrar que os costumes brasileiros são baseados em culturas de povos tradicionais os quais viveram e ainda vivem à margem da sociedade e que precisam deixar de ser alvos do preconceito e da intolerância religiosa como ponto principal para a construção efetiva da democracia nacional e da união dos povos.
Ao arquivista, portanto, cabe assumir seu protagonismo e, no dialogismo com outras áreas do saber, (re) montar essa história, através de uma gestão de documentos que saiba lidar com o jogo ideológico estatal e profissional de modo que o material que ele manuseia seja trazido a tona aos usuários seja ele um historiador, antropólogo ou simplesmente um cidadão comum merecedor de conhecer a sua história contada através de documentos traços de verdades que não são absolutas, mas que tecem a história da humanidade.
Referencias
SCHELLEMNBERG, T. R. (Theodore R.). ARQUIVOS MODERNOS: princípios e técnicas; 6 ed. - Rio de Janeiro : Editora FGV, 2006.
BEASLEY, Caroline Maria Guimarães. CARVALHEDO, Shirley. CRUZ, Keity Verônica Pereira da. Influência do contexto político nos arquivos da igreja católica - um estudo de caso no centro de documentação da conferência nacional dos bispos do brasil (CNBB). Acessado em 11/06/2009 no endereço: http://www.enearq2008.ufba.br/wp-content/uploads/2008/09/19-caroline_e_keity.pdf.
BARRETO, Aldo de Albuquerque. A questão da informação. Acessado em 28/05/2009 no endereço: http://aldoibct.bighost.com.br/quest/quest2.pdf.
ELIAS, Norbert e SCOTSON J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000
Prefeitura Municipal de João Pessoa, Paraíba. Documento de concessão de terreno. 1985.
CABRAL, E. M. A jurema sagrada. Caderno de Ciências Sociais, n° 41, PPGS/UFPB, Centro de Ciências Sociais. Universidade Federal da Paraíba. 1987.
SOARES, Stênio José Paulino. Anos da chibata: perseguição aos cultos afro-pessoenses e o surgimento das federações. Monografia do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais. João Pessoa, PB, 2007.
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